Uma vítima no banco dos réus

17 de abril de 2015   17:55

Como a sociedade enxerga um crime de homicídio praticado contra uma vítima envolvida no mundo do crime?

Fui contratado para defender um grupo de quatro jovens de classe média acusados de terem praticado homicídio triplamente qualificado (motivo fútil, recurso que impossibilitou a defesa da vítima e meio cruel). Segundo a denúncia, estavam todos num trailer de lanches e após consumirem cocaína, a vítima teria ofendido um dos acusados fazendo menção ao seu tom de voz alto e estridente, provocando a fúria dos acusados que o agrediram com pedras, paus e barras de ferro. A agressão durou vários minutos, o corpo da vitima ficou completamente desfigurado, seu rosto irreconhecível com volumoso vazamento da massa encefálica.

O crime foi cometido na frente de várias testemunhas que relataram detalhadamente os fatos e reconheceram os acusados. Apesar disso, os acusados negaram a autoria durante a instrução na primeira fase do processo.

No dia do julgamento em plenário, a narrativa do Promotor de Justiça muito bem explorou os argumentos da acusação: agressões reiteradas, por longo período, praticadas com instrumentos letais em áreas vitais. A motivação, como sendo reação a uma mera provocação sobre o tom de voz de um dos acusados soou como absurdamente fútil. O laudo, com as imagens do cadáver prostrado ao chão foram exibidas para os Jurados. Suas fisionomias eram de terror. Olhavam os réus com asco e desprezo. Os réus, presos preventivamente, chegaram escoltados pela Polícia e permaneceram algemados. Segundo o Promotor, isso indicava suas periculosidades e o risco à ordem pública. Foram comparados àqueles jovens de Brasília que incendiaram um índio. As negativas do réu na primeira fase do processo foram interpretadas pela acusação como sendo de cinismo, soberba, desprezo pela Justiça e certeza da impunidade, por estarem inseridos no topo da pirâmide social. A acusação implicava na aplicação de pena superior a 16 anos de reclusão em regime fechado.

Uma acusação destruidora que devastou o Plenário. Durante o intervalo, os familiares dos réus que lotavam o Plenário choravam compulsivamente. Os mais idosos foram embora, não agüentariam tamanho sofrimento. O clima era de total desolação. O pessimismo era generalizado. A condenação era certa. Fui cercado, imploravam por um fio de esperança. Não sabia muito bem o que dizer, me limitei a explicar o funcionamento sistemático do julgamento, traçando meramente um roteiro. Foi gigantesco o meu esforço para não me contaminar por aquele compreensível desespero e pessimismo.

Quando assumi o caso para patrocinar a defesa em Plenário do Júri, toda instrução processual e sentença de pronúncia já haviam transcorrido.

Ao conversar com os acusados, concordaram que a tese de negativa de autoria era absolutamente insustentável e concordaram em me relatar o que de fato havia ocorrido: a vítima era perigoso traficante e acabara de vender cocaína para os rapazes que a consumiram atrás do trailer, onde funcionava o “ponto de venda”; um dos acusados elogiou a “qualidade” do entorpecente, só que o mesmo tinha um problema de voz (e de fato o tom era sempre alto e estridente); o traficante pensou que o rapaz estaria zombando de seu “produto” e lhe agrediu com um tapa na cara, proferiu ofensas e ameaças de morte que evoluíram para empurrões e agressões recíprocas que foram se generalizando e se agravando, até perderem completamente o controle.

No dia do Julgamento em plenário, confessaram e relataram esta versão.

A tese levada para o Plenário foi de homicídio privilegiado, sob violenta emoção após injusta provocação da vítima. Significa o reconhecimento do crime de homicídio, mas com uma causa especial de diminuição da pena.

Levamos testemunhas que confirmaram ser a vítima um perigoso traficante de drogas, inclusive o próprio Delegado que investigou o crime, bem como testemunhas que comprovaram o comportamento pacífico daqueles jovens. As testemunhas presenciais acabaram por confirmar que a vítima iniciou a agressão desferindo um tapa na cara e ofensas verbais.

As circunstâncias do crime foram decisivas: 1. A dependência química é uma doença, assim reconhecida pela Organização Mundial de Saúde; 2. Jovens pacíficos, amedrontados e inseguros, inseridos no submundo do tráfico; 3. Uma agressão de um perigoso traficante não é a mesma coisa que uma inocente briga de colégio. Traficantes aplicam suas próprias leis, matam, agridem, estupram. Ser agredido e ameaçado por um traficante é o mesmo que ter prolatado contra si um mal certo e de proporções imprevisíveis; 4. Os jovens reagiram sob o efeito de substancia entorpecente vendido pela própria vítima.

Ficou claro que a agressão foi iniciada pela vítima. Não houve dúvida de que a agressão foi injusta, afinal a vítima desferiu um tapa na cara, ofendeu, ameaçou e agrediu por entender que o tom de voz de um acusado era ofensivo ao comércio de seu “produto”. A violenta emoção com que agiram os réus perfeitamente demonstrado pelo medo, pela conduta do traficante, pelo que sua aterrorizante figura representa naquele submundo e pelo entorpecente “ministrado” pela própria vítima. Aliás, essa era a única explicação para que jovens pacíficos explodissem daquela forma. Sim, era um crime, mas um crime que não merecia uma punição exasperada.

Apesar da veemente discordância do Ministério Público, o Tribunal do Júri reconheceu a tese da defesa por unanimidade (7X0), sendo os réus condenados a 4 (quatro) anos de reclusão no regime aberto. Estavam presos e foram colocados imediatamente em liberdade.

Como se sabe, os jurados votam secretamente e não precisam justificar ou fundamentar sua decisão.

A motivação daquele veredicto comporta várias interpretações: se os jurados julgaram o crime segundo o binômio vítima X réu, aplicando uma ciência jurídica denominada vitimologia e considerando o comportamento da vítima como sendo decisivo para a conduta dos acusados e reconhecendo o preenchimento dos requisitos do delito privilegiado, sim, os jurados acertaram na motivação do julgamento.

Mas tive dúvidas se isso ocorreu.

A sociedade vive assolada pela criminalidade. Este medo generalizado transformou-se em sede de vingança quase que institucionalizado. A sociedade aplaude casos de espancamento e morte de pessoas ligadas ao crime, incentivam a justiça pelas próprias mãos. Se assim pensaram os Jurados, erraram em suas motivações.

Jamais coadunei com a vingança particular e em plenário, não houve um único segundo em que defendi este entendimento. Como advogado, serei sempre um defensor das liberdades, dos direitos e garantias constitucionais.

A vingança como fundamento da aplicação da pena comporta uma discussão que ultrapassa os limites do processo e domina nossa sociedade e a forma como o Estado e Justiça conduz suas ações e decisões, e cujo alcance é muito maior do que podemos supor.

O que motivou os jurados jamais saberemos, mas foi surpreendente constatar a nítida alteração do rumo do julgamento: de uma condenação certa para uma absolvição unânime. Da crença de um ato asqueroso e reprovável para o reconhecimento de um crime aceitável. E o elemento que catalisou essa mudança foi a análise do comportamento da vítima. Entre as teses da acusação e defesa não houve substancial divergência quanto aos fatos em si. A discussão pautou-se quase que exclusivamente no comportamento da vítima. Sim, a vítima foi julgada naquele dia.

 

Crônica Criminal: baseada em fatos reais. Algumas informações foram alteradas para preservar a origem do processo e a identidade dos envolvidos, em conformidade com as normas éticas e de sigilo profissional, sem, entretanto, alterar a essência da história.

Autor

Cristiano Joukhadar

Outras publicações deste autor: