Um Psicopata no Tribunal do Júri

4 de maio de 2015   15:04

É inegável a dificuldade que a sociedade tem para reconhecer direitos de acusados que ostentam antecedentes criminais e são taxados de perigosos.

“A sociedade vive assolada pela criminalidade. Este medo generalizado transformou-se em sede de vingança quase que institucionalizada. A sociedade aplaude casos de espancamento e morte de pessoas ligadas ao crime, incentivam a justiça pelas próprias mãos” (Crônica: Uma vítima no banco dos réus). Falar em direitos humanos, direitos individuais ou garantias constitucionais para pessoas que cometem crimes é, para muitos, uma heresia.

Fui contratado para defender um jovem acusado de uma execução bárbara. Segundo a acusação, após uma discussão sem importância ocorrida numa festa, o acusado teria ido até o local visando vingar o amigo envolvido na contenda. O crime foi cometido na rua, quase em frente ao local da festa, logo após o seu término, mediante disparos de arma de fogo. As duas vítimas eram jovens tranqüilos, pacíficos, estudantes, sem qualquer envolvimento com o crime.

Segundo a polícia, boatos davam conta da participação do réu. Na delegacia, testemunhas presenciais reconheceram o acusado. Preso dias depois do crime em razão de mandado de prisão temporária, o réu negou a autoria.

Foi denunciado por homicídio duplamente qualificado (motivo torpe e recurso que impossibilitou a defesa do ofendido).

O fato é que, perante o Juiz, as testemunhas negaram ter feito o reconhecimento ou dado a versão na forma como constava na delegacia. Pior: a narrativa que constava no Inquérito Policial apresentava sérias divergências com fatos incontroversos, como horário de término da festa, e pela prova pericial, como a posição do disparo e posição da vítima.

Interrogado pelo Juiz o réu disse que a polícia estaria forjando as provas, para fins de prejudicar seu primo, suposto traficante de drogas, que estaria sendo extorquido pela polícia. Apresentou um álibi que foi confirmado por testemunhas.

Apesar disso, o réu foi pronunciado para ser julgado pelo Júri Popular.

As provas eram extremamente frágeis. Aliás, entendi equivocada a decisão que o pronunciou. Simplesmente não havia qualquer indício contra o acusado. As testemunhas se retrataram do reconhecimento realizado na delegacia. Os depoimentos das testemunhas na fase inquisitiva foram visivelmente manipulados e foram contraditos por testemunhas ouvidas judicialmente, por fatos incontroversos e pela prova pericial. Isto sem falar do princípio de que a prova colhida na delegacia não pode fundamentar uma decisão judicial, pois colhida de forma inquisitiva, ou seja, sem que o acusado tenha direito de se defender e participar da prova.

Ocorre que, relatórios policiais indicavam que o réu, que ostentava uma condenação por tráfico de drogas, era pessoa perigosa, envolvida no mundo do tráfico, prestando-se como “matador” a mando de chefe do tráfico local. Alegava a acusação que as testemunhas estariam sendo ameaçadas, daí a retratação. Policiais foram ouvidos e relataram que o réu era suspeito da prática de dezenas de homicídios, mas nunca obtinham provas para condenação em razão do medo que despertava nas testemunhas. Segundo a acusação, era oportunidade única de tirar um psicopata das ruas, termo usado pelos policiais e Promotor de Justiça.

Fiquei incomodado com a pecha de estar defendendo um psicopata. Alguns me olhavam de “canto de olho”, outros lançavam um olhar frio de reprovação. Caso de repercussão de grande interesse para a sociedade. Me senti julgado e avaliado, tal e qual o acusado.

Fui conversar com o acusado que estava preso numa cadeia local. O horário de visita havia acabado, mas conversei com o Diretor e fui autorizado a entrar na cadeia. Ocorre que os presos já haviam sido recolhidos às celas. Tive que adentrar no pátio, local onde circulavam alguns presos e falar diretamente com o acusado na grade da cela. Esse recolhimento era feito pelos próprios presos (chamados de “faxina”), que tinham as chaves e controlavam todo o acesso, de modo que eu estava à mercê dos presos.

A conversa com o acusado foi sinistra. Ele negou a autoria da acusação e reiterou o que já havia dito no processo. Disse mais, que já havia cometido outros delitos, mas que neste processo era inocente. E de súbito passou a relatar os crimes que já praticara. Seus relatos eram minuciosos, detalhados. Seu olhar era frio. Não havia remorso, ao contrário, era dominado pelo mal e pela vaidade criminal. Crimes bárbaros, a maioria execuções relacionadas ao tráfico de drogas, contra rivais ou usuários devedores, e outros praticados por motivos de somenos importância. Alguns praticados sumariamente, mas muitos com requintes de crueldade que demonstravam uma personalidade deformada de quem tem prazer com a dor e sofrimento alheio.

Ouvia o relato horrorizado. Parecia que eu estava hipnotizado. Simplesmente não consegui resistir e eu prosseguia ouvindo, ouvindo, ouvindo. Aquele relato sinistro, aliado à circunstância do local, diretamente na cela dos presos, me deu uma sensação de estar vivendo um filme de terror.

Decidido a abandonar o caso, passei a noite em claro. Mas mudei de idéia nas semanas seguintes.

Não achava correta a condenação de uma pessoa sem provas. Pra mim isso iria contra tudo o que aprendi. Além disso, acreditava na sua inocência naquele processo e tudo isso foi decisivo para aceitar o caso.

Me formei para defender a lei e a justiça, independentemente de quem seja o acusado. Estudei que a necessidade de provas para condenação é um direito da sociedade, não apenas de quem está sendo julgado. Se a sociedade permitir que qualquer pessoa seja condenada sem provas, estaremos prestigiando a arbitrariedade e a tirania, que sempre se voltam inicialmente contra os “inimigos” e depois contra a coletividade, com conseqüências nefastas para todos. Nos regimes tirânicos e ditatoriais a justiça é tratada com esse viés e em todos os casos, a injustiça acabou por se voltar contra os cidadãos de bem.

Me senti desafiado pelos olhares de reprovação. O advogado não defende o crime. O advogado defende a justiça, defende princípios e leis válidos para todos. Não iria me intimidar. Não iria me submeter a este tipo de preconceito contra um profissional fundamental para o Estado Democrático de Direito. Iria fazer o meu trabalho e ponto final.

Sabia que defender exclusivamente um direito processual era pouco. Levei para o Plenário, também, a questão das provas forjadas pela Polícia. Vivemos num Estado policialesco, com uma policia violenta e muitas vezes corrupta, de forma que condenar o acusado seria prestigiar um comportamento inadmissível. Seria dar uma “carta branca” para que qualquer policial, por mais despreparado e corrupto que seja, se transforme em juiz, e decida quem deva ser absolvido e quem deva ser condenado.

O réu foi absolvido por 4 X 3. Uma votação apertada que contrasta com o panorama de absoluta falta de provas válidas. Evidentemente, parte dos jurados consideraram mais importante o fato de o acusado estar envolvido no mundo do crime, desconsiderando a necessidade de existência prova válida para condenação.

O réu foi posto em liberdade. Passei a noite em claro com uma ponta de dúvida: seria realmente inocente? Seria verdadeira sua versão de provas forjadas pela polícia? Teria ele ameaçado as testemunhas? Teria ele confessado informalmente todos aqueles outros crimes para ganhar minha confiança?

Alguns meses depois o réu foi morto numa troca de tiros com a polícia. Após sua morte, tive a oportunidade de sanar minha curiosidade. Uma pessoa diretamente ligada aos fatos, e sem qualquer interesse na causa, me confidenciou o que havia ocorrido.

É… A velha verdade, tão perseguida no processo penal. Quando obtida depois da sentença pode ser doce ou amarga, cruel ou libertadora, justa ou injusta.

Pondero, entretanto, que não há o que considerar ou relatar a respeito da “verdade”, e esta ficará guardada, escondida nos recônditos de minha mente, pois, relatá-la seria desviar o foco da verdadeira celeuma.

E a verdadeira celeuma não está em saber se o réu era culpado ou não, e sim na necessidade desta culpa estar demonstrada no processo. Frise-se que o réu foi absolvido por falta de provas válidas para condenação e este é um primado processual que sustenta nossa justiça e o Estado Democrático de Direito. Fui dormir com a consciência tranqüila e a certeza de que a justiça foi feita.

 

Crônica Criminal: baseada em fatos reais. Algumas informações foram alteradas para preservar a origem do processo e a identidade dos envolvidos, em conformidade com as normas éticas e de sigilo profissional, sem, entretanto, alterar a essência da história.

 

 

 

Autor

Cristiano Joukhadar

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