Um “Negrinho Safado” no Banco dos Réus

22 de junho de 2015   13:11

“Hoje terei a difícil missão de defender aquele ‘negrinho safado’…”. Dedo em riste em direção ao Réu, assim abri a fala da defesa em julgamento do Tribunal do Júri, causando espanto e estupefação a todos os presentes.

A primeira vez que conversei com o cliente, alguns meses antes deste julgamento, fiquei absorto. Rejeitando qualquer tentativa de ajuda em sua defesa, me disse que iria “confessar” e não estava interessado em me ouvir. Rejeitava, inclusive, qualquer tentativa de redução de pena. Virou as costas e pediu para o carcereiro para retorná-lo à cela. Não autorizava visitas de familiares, estava deprimido e isolado.

Eu havia estudado o processo. Seu comportamento, em desistir de sua defesa, apesar de inesperado e não desejado, era compreensível diante do que eu descortinara ao apurar os fatos, e foi o que me motivou a me dedicar profundamente nesta defesa.

O Réu já tinha sido ouvido duas vezes na Delegacia de Polícia e depois, perante o Juiz. Em todas as oportunidades sua confissão foi plena. Matou um homem por que este não permitiu o namoro com sua filha. Armou uma emboscada para a vítima, esperando-a em local em que sabia que passaria, e descarregando, pelas costas, todos os 6 projéteis de seu revólver calibre 38. Ouvida, a garota afirmou ter contato freqüente com o réu e que estudavam juntos. Disse ainda, que o Réu, de fato a paquerava, indo com freqüência à porta de sua casa e conversando no colégio. Não ficou claro se ambos tinham algum relacionamento, mas o fato é que pai ficou incomodado, chegando a dizer que não a queria envolvida com o Réu.

No dia do julgamento, o Réu cumpriu o que dissera e mais uma vez confessou o crime com riqueza de detalhes. Sua narrativa preenchia todos os requisitos das qualificadoras de futilidade na motivação e recurso que impossibilitou a defesa do ofendido. Ainda que considerasse a atenuante da confissão, sua pena chegaria próximo de 20 anos de reclusão. Primeiro a falar, o Promotor de Justiça massacrou o acusado, um discurso enérgico e agressivo em que por vezes botou o dedo na cara do acusado, que a tudo ouvia de cabeça baixa.

Até por isso, minha fala inicial causou maior impacto. Não bastasse a agressão do Promotor, o Defensor chamar seu próprio cliente de “negrinho safado” trouxe uma sensação de confusão geral, ainda mais por que em seguida discorri sobre a importância do direito de defesa e do contraditório.

Expliquei, depois, que na verdade, fazia referência ao que o Réu relatou em seu primeiro interrogatório na fase inquisitiva, de que a vítima dissera que não queria a filha namorando um “negrinho safado”.

Argumentei que aquela sensação de “choque” com a minha fala era experimentada pelo réu todos os dias de sua vida. Todos os dias, alguém o fazia sentir-se como um “negrinho safado”.

O réu tinha um histórico, confirmado por testemunhas ouvidas em plenário, de sofrimento como vítima de racismo. Único negro da sala de aula era hostilizado por parte dos colegas, situação que se repetia na rua e em outros locais que freqüentava. Tímido e com tendência à depressão, o réu agüentou a tudo calado, até aquele fatídico dia em que explodiu.

Discorri largamente sobre o perverso, sutil e disfarçado racismo presente em nossa sociedade e, inclusive, no sistema de repressão penal. Basta dizer que a maioria esmagadora da população carcerária é negra.

Relatei uma estória retratada pelo antropólogo Darcy Ribeiro em que este perguntou o nome de um rapaz que tinha lavado seu carro, tendo o rapaz respondido: “Meu nome é negão”. Reiterou a pergunta, explicando que queria saber o seu nome e não o apelido. O rapaz ficou furioso e aos berros o mandou embora: “área, área…”. A explicação dada pelo estudioso é que o rapaz havia desistido de sua cidadania, de sua personalidade e de sua auto-afirmação e identidade. Submisso ao racismo presente na sociedade, não precisava mais o rapaz lutar. Bastava se postar como objeto, como ser humano desprovido de direito e assim era “aceito”, ainda que como um ser inferior. Qualquer tentativa de lembrá-lo de sua condição “humana” era visto pelo rapaz como extremamente doloroso.

A estória relatada se encaixou com o perfil do acusado e sua postura de réu confesso: uma pessoa que desistiu da vida e de seus direitos. A aproximação com a garota branca foi sua última tentativa de se ver como “igual”.

A tese visava uma redução de pena com o reconhecimento do delito privilegiado, sob motivo de relevante valor moral, o que ensejaria uma pena de 8 anos de reclusão e o afastamento do caráter hediondo da infração, o que permitiria uma progressão mais branda no cumprimento da pena.

Ao final, os jurados optaram por uma decisão “salomônica”, ou seja, algo próximo do que eles entenderam ser um “meio termo”: por maioria de votos a tese defensiva de homicídio privilegiado foi afastada, mas por outro lado, permitiram uma redução da pena, ao afastarem a qualificadora do motivo fútil e reconhecerem a existência de circunstâncias atenuantes. A redução foi singela, uma vez que os Jurados reconheceram a qualificadora do recurso que impossibilitou a defesa do ofendido, mantendo o caráter hediondo do delito. A pena foi fixada no patamar mínimo do homicídio qualificado, 12 anos de reclusão em regime fechado.

Não sei dizer até que ponto a sociedade brasileira está preparada para fazer uma autocrítica sobre o preconceito de cor, raça, gênero sexual, idade, deficiências físicas etc, efetivamente presente. Mas sei que é grande a violência física e moral praticada pelo Estado e por cidadãos contra as minorias, e a reação (direta ou indireta) muitas vezes também é violenta. Até quando vamos alimentar esse circulo vicioso?

Parcialmente frustrado com o resultado, me consolei em resgatar um ser humano das trevas, ainda que por curto interregno de tempo: ao final do julgamento, o Réu, com um único fio de lágrimas em seu rosto, me disse timidamente “obrigado”. Por um segundo, senti um brilho de dignidade em seus olhos. Não demorou para o réu se “libertar”: morreu algum tempo depois na cadeia após uma overdose de cocaína, na primeira vez que fez uso do entorpecente.

 

Crônica Criminal: baseada em fatos reais. Algumas informações foram alteradas para preservar a origem do processo e a identidade dos envolvidos, em conformidade com as normas éticas e de sigilo profissional, sem, entretanto, alterar a essência da históri

Autor

Cristiano Joukhadar

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