Esta é uma estória real ocorrida no início de minha carreira e que marcou minha vida profissional.
Fui contratado para patrocinar a defesa em plenário do Júri, de um preso acusado e pronunciado pela prática de homicídio duplamente qualificado. A acusação narrava uma execução de um pai de família, diante de sua esposa, à porta da residência do casal, sendo o suposto motivo uma vingança pelo testemunho num processo envolvendo uma causa de direito de família. O acusado seria o executor material e amigo do mandante do crime, que estava foragido. A esposa da vítima reconheceu “sem sombra de dúvida” o acusado, que não tinha qualquer álibi.
Fui à cadeia conversar com o cliente, que negou a prática do delito e apontou quem seria o verdadeiro culpado, um criminoso de alta periculosidade, suposto autor de dezenas de homicídios, mas que sempre se livrava pela falta de provas. Ele não poderia delatá-lo, pois, assinaria sua sentença de morte.
Resolvi tirar esta estória a limpo e conversar com o verdadeiro assassino que estava preso preventivamente por tráfico de drogas em outra cadeia. Cara a cara, ouvi sua confissão plena, bem como um pedido para que ajudasse o inocente que estaria “segurando essa”. A semelhança física entre o assassino e o inocente era incrível.
Não podia me conformar com aquela situação injusta e cruel. Mesmo respeitando os apelos do cliente para que não envolvesse o nome do assassino, me senti na obrigação de buscar a justiça a qualquer preço. Faltava um mês para o julgamento, estudei o caso com profundidade e iniciei uma peregrinação junto a todas as autoridades que participaram daquele processo que já se arrastava por 2 anos, sempre respeitando a ética e o sigilo inerente ao meu trabalho. Os policiais disseram ter investigado esta estória, mas a vítima não reconheceu o delatado. O promotor disse já ter ouvido esta estória, mas que se a vítima não o reconhecia, não poderia fazer nada. Presos a uma certeza formal, abandonaram a verdade real.
Estava evidente para mim que a esposa da vítima foi iludida pela semelhança física. Movida pelo ódio em relação ao mandante daquele crime terrível, acusar o amigo seria o caminho mais natural, e que inconscientemente, preenchia com mais plenitude a sede de vingança que costumar dominar e cegar as vítimas sobreviventes e parentes.
O Julgamento foi uma batalha de mais de dez horas. Me preparei arduamente, lutei incansavelmente, mas no final, por uma apertada votação de quatro votos contra três, prevaleceu a “convicção” da esposa da vítima e meu cliente foi condenado a 14 anos de reclusão.
No dia seguinte ao julgamento recebi a visita do pai. Apesar da condenação, reconheceu a dificuldade da missão e, tal qual o condenado, agradeceu o trabalho e o empenho.
O injustiçado ficou dez anos preso até sair em liberdade condicional. Mudou-se e nunca mais tive notícias. Difícil imagina sua dor e o violento impacto que essa injustiça trouxe à sua vida.
Mais difícil ainda é imaginar o quão duro se torna o coração das pessoas que operam o Direito e se tornam cumplices de tragédias deste tipo. Para o Estado o réu é apenas uma estatística, um número.
Incumbe ao advogado carregar nos ombros as aflições e angústias dos clientes e familiares e lutar para corresponder à sua verdade e às suas expectativas. Um tsunami de emoções para administrar que se constitui, sem dúvida, na parte mais difícil da advocacia criminal.
A responsabilidade do advogado é grande, lutando pelo bem mais precioso depois da vida: a liberdade. Presenciar uma injustiça nos causa uma profunda marca. Posso afirmar, sem qualquer exagero, que passado mais de dez anos, toda vez que entro num Plenário sou assombrado por este fantasma, aumentando minha obstinação em estudar, lutar e enfrentar com todas as minhas forças contra a arbitrariedade e o fantasma da injustiça.
Crônica Criminal: baseada em fatos reais. Algumas informações foram alteradas para preservar a origem do processo e a identidade dos envolvidos, em conformidade com as normas éticas e de sigilo profissional, sem, entretanto, alterar a essência da história.