Umas das grandes dificuldades na advocacia criminal é conciliar a expectativa do cliente com os elementos de prova existentes no processo. Dentre vários desafios deste tipo que já tive em minha carreira, nenhum me marcou mais do que o que passarei a relatar.
Meu cliente era acusado de ter executado um crime de homicídio contra um pai de família, em conluio com a esposa da vítima, de quem seria seu amante.
A vítima foi alvejada em sua própria casa, quando se preparava para sair para o trabalho, logo pela manhã. A esposa, única testemunha presencial, foi ouvida quando da elaboração do boletim de ocorrência e narrou o que seria uma tentativa de assalto, em que a vítima teria reagido.
No decorrer da investigação, constatou-se que a versão inicial da esposa da vítima era incompatível com os laudos periciais. Começou-se a investigar supostos amantes da esposa que pudessem ter ligação com o fato, chegando ao nome do réu.
Pressionada pela polícia, a esposa acabou por confessar a participação no crime, apontando o réu como executor do crime. Sua colaboração lhe rendeu o direito de responder ao processo em liberdade.
A polícia obteve a prisão temporária do réu (depois convertida em preventiva) e mandado de busca e apreensão em sua residência onde foram localizadas várias cartas enviadas pela esposa da vítima combinando o homicídio. Perícia grafotécnica confirmou a origem da grafia.
A vizinha da vítima depôs e confirmou que a esposa e o réu eram amantes, tendo-os vistos juntos às escondidas.
Uma testemunha relatou ter visto a esposa e o réu tomando sorvete e dando risada, no dia do velório da vítima.
Uma testemunha confirmou ter ouvido do réu, dias antes do crime, um pedido para o ajudasse a comprar uma arma, pois teria um “acerto de contas a fazer”.
O réu negava a autoria, mas não tinha álibi e se contradisse acerca do seu suposto envolvimento com a esposa da vítima, ora confirmando, ora negando.
A esposa da vítima, beneficiada com o direito de responder ao processo em liberdade, fugiu e não foi localizada sequer para sua citação e intimação inicial.
Fui contratado para a defesa em plenário, quase dois anos após os fatos, depois de transcorrida toda a instrução e após a sentença que o pronunciou e o remeteu para julgamento perante o Júri Popular, tendo recebido o processo tal e qual acima relatado.
Em conversa com o réu, este negou a prática do crime, mas confirmou ter se relacionado rapidamente com a esposa da vítima. Dizia que eram provas “forjadas”, mas não havia uma explicação plausível para aquele robusto acervo probatório.
Argumentei com o réu que sua versão não encontrava qualquer respaldo nas provas dos autos e tentei convencê-lo a alegar alguma tese que permitisse algum tipo de redução de pena. O réu foi drasticamente contrário: iria negar a autoria e ponto final.
Atendi o enfático desejo do cliente e passei a trabalhar a tese de negativa de autoria. O ponto de partida foi o primeiro depoimento, ainda na fase policial, da vizinha da vítima em que, além de apontar o réu como suposto amante, levantou dúvidas sobre outra pessoa ser seu amante também. Investigando esse cidadão, constatei que o mesmo havia se mudado, sem que ninguém tivesse notícias dele. Seria ele o verdadeiro assassino? Teria ele engedrado a falsa acusação contra o réu para se livrar?
No dia do Júri, esta foi a tese, amparada a por várias testemunhas que confirmaram que os dois eram amantes e que, principalmente, confirmaram que as testemunhas (à exceção da vizinha da vítima) eram pessoas ligadas ao verdadeiro assassino. Com relação às cartas, aleguei que a esposa, participando da falsa acusação, às redigiu e colocou nos pertences pessoais do réu prevendo o seu encontro pela polícia.
O Ministério Público, por sua vez, alegou que em dois anos, jamais aquela versão havia sido mencionada, que o caso foi exaustivamente investigado. Pontuou contradições do réu e alegou que se fosse inocente, não precisaria mentir sobre ser ou não amante da vítima. Pediu a abertura de processo contra as testemunhas por falsear a verdade. Como advogado, fui violentamente atacado por sustentar uma tese fantasiosa e acusar um inocente.
Surpreendentemente, por uma massacrante votação de 6 X 1 o réu foi absolvido. Depois de mais de dois anos preso, voltava o réu a liberdade. Réu e seus familiares choravam compulsivamente, tomados por uma alegria e emoção efusiva e sincera. A dificuldade do caso me deu uma sensação de satisfação profissional muito grande, mas confesso, uma satisfação entrecortada, esfriada, contida.
Tempos depois vim a descobrir que a polícia, tentando cumprir mandado de prisão expedido contra a esposa da vítima, obteve autorização judicial para escuta telefônica em que gravaram e confirmaram que a esposa havia fugido junto com o tal amante e verdadeiro assassino. Isso mesmo, o amante desde o início apontado pela vizinha e sobre o qual não houve qualquer investigação por parte da polícia.
Aquela notícia deveria me trazer uma sensação positiva, de missão cumprida, afinal estudei, investiguei e levei para o plenário uma tese que se provou verdadeira e que foi corretamente reconhecida pelo Júri Popular.
Mas não, a dissonância entre a versão do cliente e as provas produzidas, e a minha tentativa de orientar o réu a confessar o crime, me fez refletir sobre minha missão como advogado. De como somos pequenos diante do sagrado direito de defesa. Me fez lembrar que o advogado é a última tábua de salvação de um acusado; que o ser humano suporta perder tudo, até mesmo sua liberdade, mas jamais suportará perder a esperança e é o advogado o fiador e o instrumento desse direito; e que jamais, por mais conhecimento técnico, por mais estudo, jamais podemos tirar contra a esperança de quem nada mais tem.
Crônica Criminal: baseada em fatos reais. Algumas informações foram alteradas para preservar a origem do processo e a identidade dos envolvidos, em conformidade com as normas éticas e de sigilo profissional, sem, entretanto, alterar a essência da história.